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Publicado por Marçal Justen Filho em 7.09.2016 às 11:23

Corrupção: pressupostos para a aplicação da Lei nº 12.846

In: CÂMARA, Alexandre Freitas; PIRES, Adilson Rodrigues; MARÇAL, Thaís Boia. Estudos de Direito Administrativo em homenagem ao professor Jessé Torres Pereira Junior. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 241-254.

Publicado por Marçal Justen Filho em 14.03.2016 às 21:23

Coluna da Gazeta do Povo – A Lei Anticorrupção, o Novo CPC e as figuras da responsabilidade de terceiro e da desconsideração da pessoa jurídica

Marçal Justen Filho*

A vigência das Leis nº 12.846 (Lei Anticorrupção) e 13.105 (Novo Código de Processo Civil) tem despertado muitas discussões. Sob o ponto de vista teórico, há uma questão interessante. Relaciona-se com as figuras da desconsideração da pessoa jurídica e da responsabilidade societária por atos alheios.

A desconsideração da personalidade societária consiste no afastamento do regime jurídico próprio das entidades personificadas. Isso pode conduzir à atribuição da conduta diretamente a um sujeito distinto da pessoa jurídica. Em tais situações, existe uma solução no plano da autoria da conduta. Nesses casos de desconsideração, o ato será imputado (conjunta e concomitantemente) a um outro sujeito – o qual poderá por ele ser também responsabilizado como um efeito jurídico. As hipóteses comuns de desconsideração da personalidade societária resultam da utilização abusiva da pessoa jurídica. Admite-se a superação da distinção entre a pessoa jurídico e o sócio em virtude da utilização abusiva ou fraudulenta da pessoa jurídica.

A situação exposta não se confunde com os casos de responsabilização de uma pessoa jurídica por eventos praticados por outrem. Em tal hipótese, não se controverte sobre a autoria, mas o direito determina os efeitos de obrigações assumidas por um sujeito alcançarão a um terceiro. A responsabilização do terceiro não pressupõe, de modo necessário, a desconsideração da personalidade societária.

Um exemplo permite compreender a distinção. O art. 1.023 do Código Civil determina que, “ Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária”. Essa regra não contempla a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade simples. Apenas estabelece que os sócios respondem pelas perdas da sociedade. Ou seja, o patrimônio pessoal dos sócios será vinculado à satisfação das dívidas de titularidade da sociedade simples. Não se discute a titularidade da dívida, que é inquestionavelmente da sociedade simples.

Existem pontos de contato entre as duas figuras da desconsideração da pessoa jurídica e da responsabilização de terceiros. A desconsideração da personalidade societária implica a atribuição de certo ato a um sujeito distinto daquele a quem o ato seria imputado. Isso pode produzir diversos efeitos. A depender das circunstâncias, poderá surgir a responsabilidade de terceiro como efeito da desconsideração. Mas daí não se segue a identificação entre ambos os institutos.

A desconsideração consiste numa reação à utilização abusiva ou fraudulenta de uma pessoa jurídica. Pode ser adotada para diversos fins, inclusive para o simples efeito de identificar o vício de atos jurídicos. Pode produzir a responsabilidade do sujeito como decorrência da imputação da autoria do ato praticado.

A responsabilidade de terceiro não envolve necessariamente a prática de fraude ou de abuso. Pode ser prevista como uma solução desvinculada de qualquer atuação fraudulenta ou abusiva. Aliás, a responsabilidade de um terceiro pode surgir inclusive como uma solução negocial inerente às atividades da vida social. Assim se passa com a garantia por dívida alheia. O fiador assume a responsabilidade pelo pagamento da dívida do afiançado. É verdade que o pressuposto da exigibilidade do pagamento pelo fiador consiste na ausência de pagamento pelo afiançado – o que configura, sob um certo ângulo, um ato ilícito. No entanto, a responsabilidade do fiador não é criada como uma consequência de práticas reprováveis.

A Lei nº 12.846 expressamente alberga a diferenciação entre extensão da responsabilidade de pessoa jurídica e desconsideração da personalidade societária. O art. 4º, § 2º determina que “ As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado”. Essa regra não se relaciona com a desconsideração da pessoa jurídica. Trata-se apenas de estender a terceiros os efeitos pecuniários do sancionamento imposto a outro sujeito.

Mas o art. 14 da mesma Lei nº 12.846 prevê que “ A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”.

Então, a desconsideração societária é prevista formalmente na Lei nº 12.846 como uma solução jurídica distinta daquela estabelecida no art. 4º, § 2º, do mesmo diploma.

Tal distinção não é irrelevante, especialmente em vista da garantia constitucional da pessoalidade das penas (CF/88, art. 5º, XLV – “ nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”).

A sanção propriamente dita não pode ser imposta senão ao autor do ilícito. Por isso, a prática de atos de corrupção não pode acarretar a punição de outras empresas, ainda que vinculadas por relações societárias, àquela que praticou a infração. A própria Lei Anticorrupção reconhece esse limite, ao prever que a responsabilidade da terceira empresa será limitada à reparação integral do dano causado. Mas vai além do cabível ao estabelecer que também a penalidade pecuniária poderá ser exigida de um terceiro – o que infringe a Constituição.

Diversamente se passa na hipótese de desconsideração da pessoa jurídica, que envolve especificamente a determinação da autoria do ilícito. Justamente por isso, o art. 14 determina que, nas hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica, todas as sanções pertinentes à autoria do ilícito serão impostas também aos sócios e administradores da sociedade que vierem a ser reconhecidos como titulares da conduta reprovável. Essa hipótese é muito distinta daquela contemplada no art. 4º, § 2º, da mesma Lei.

A diferenciação adquire ainda maior relevância jurídica em vista da vigência do novo CPC (Lei 13.105/2015). Nos arts. 133 a 137, está previsto o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O afastamento dos efeitos da personificação societária deixou de se configurar como solução produzida pela avaliação do juiz sobre os fatos da causa. Tornou-se objeto de uma pretensão autônoma e específica, que se traduz no exercício do direito de ação. Para ser mais preciso, somente se admite a desconsideração como decorrência do exercício da jurisdição estatal. A desconsideração da personalidade societária exige o exercício do direito de ação, por meio do qual é formulado um pedido autônomo nesse sentido. Se o autor pretender obter a desconsideração, incumbe-lhe formular pedido específico nesse sentido, ao exercer a ação. Se a desconsideração for invocada pelo réu ou surgir como uma questão própria no curso do processo, será instaurado um incidente processual específico. Em tais casos, configurar-se-á uma ação incidente, acarretando inclusive a suspensão do processo principal.

Em face dessa inovação processual, a disciplina processual dos dois institutos tornou-se nítida. O enquadramento de certa situação na categoria da responsabilização de terceiro propicia um tratamento jurídico diverso daquela reservado para os casos de desconsideração da personalidade societária. Por essa razão, uma distinção que poderia ser considerada como meramente teórica tornou-se uma questão prática relevante.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.



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