Direito Administrativo da Emergência – um modelo jurídico
Marçal Justen Filho
Alguns dizem que, depois da pandemia, nada será igual ao que era antes.
segunda-feira, 20 de abril de 2020
A pandemia1 afetou o direito vigente e as relações jurídicas preexistentes. Medidas legislativas e administrativas e decisões judiciais adotaram soluções inovadoras para disciplinar não apenas os eventos futuros, como também aqueles do passado – mais precisamente, os efeitos presentes e futuros de atos jurídicos perfeitos e acabados ocorridos no passado.
Os institutos jurídicos disponíveis foram concebidos em vista de um cenário radicalmente distinto e incomparável. E se tornou inviável resolver os impasses ocorridos mediante a aplicação dos mecanismos jurídicos já existentes.
1) A colocação do problema
Tem-se aludido a um “Direito Administrativo da Emergência” para indicar medidas que afastam, suspendem ou extinguem o direito administrativo até então vigente.
A situação emergencial impõe a submissão das relações jurídicas em curso a um modelo jurídico diferenciado, ainda que não configurado por via legislativa.
2) A reserva do possível e o afastamento de institutos tradicionais
Não existem recursos econômicos disponíveis, nem no setor público, nem na iniciativa privada, para compensar os custos e as despesas produzidos pela pandemia2.
Pode-se aludir a uma manifestação até então desconhecida da “reserva do possível”. Os sujeitos públicos e privados não dispõem de condições materiais para cumprir os deveres assumidos no passado. Há obstáculos econômicos insuperáveis, que afastam a aplicabilidade dos institutos jurídicos prevalentes no passado.
A referência à reserva do possível decorre do esforço de evitar a disputa sobre os institutos tradicionais das teorias da imprevisão, do caso fortuito e de força maior e do fato do príncipe.
A situação presente comporta enquadramento em qualquer uma dessas categorias, a depender do critério escolhido. A alusão a reserva do possível permite superar essas concepções tradicionais para afirmar, de modo puro e simples, que se tornou impossível dar aplicação às regras legais e infralegais concebidas para uma situação fática de normalidade.
Assim, por exemplo, há orientação no sentido de que a crise cambial não se enquadra na teoria da imprevisão, nem configura caso fortuito ou de força maior. Esse entendimento foi consagrado a propósito de fatos muito diversos daqueles ora experimentados. Aplicar essa concepção a casos concretos pode produzir resultados despropositados e propiciaria efeitos desastrosos.
3) Afastamento das regras legais e infralegais
A ausência de aplicação das regras legais e infralegais, abrangendo inclusive os efeitos de atos jurídicos perfeitos consolidados sob a sua égide, não significa a eliminação da validade e da eficácia das normas constitucionais – especialmente daquelas que reconhecem e protegem os direitos fundamentais.
4) Aplicação da ordem constitucional
Deve permanecer aplicável o postulado fundamental de que toda e qualquer decisão de autoridade estatal, versando sobre (a) providências destinadas a combater (direta ou indiretamente) a pandemia ou (b) as soluções relativas aos efeitos de atos jurídicos perfeitos, somente será válida se compatível com a ordem jurídica vigente.
4.1) Levando os princípios a sério
Todos os princípios consagrados na Constituição, especialmente os direitos fundamentais, são juridicamente vinculantes. Nenhum aplicador do direito está autorizado a ignorar os princípios e a decidir de modo desvinculado do caso concreto.
Na atuação jurídica concreta, o princípio não recebe tratamento adequado à sua natureza, nem lhe é reconhecida a função fundamental que desempenha na ordenação jurídica.
Em alguns casos, o princípio é solenemente ignorado. A autoridade emite decisão tal como se o princípio constitucional não existisse. Mesmo nos extratos mais elevados da hierarquia decisória, é muito comum a decisão que considera o princípio como uma previsão constitucional inútil.
Em outros casos, o princípio é um recurso meramente retórico, sem qualquer relevância efetiva e invocado somente para dar aparência de juridicidade a determinado ato.
4.2) Distinções entre princípio e regra
Além disso, é problemático tratar o princípio como regra. Nos dias de hoje, não tem sentido insistir na distinção entre “princípio” e “regra”. Mas é fundamental compreender que o princípio não comporta aplicação nos mesmos termos de uma regra. A regra é aplicada segundo a lógica do “tudo ou nada”. Promove-se a subsunção dos fatos à hipótese normativa, de modo a identificar a incidência do mandamento. Já o princípio deve ser ponderado a depender das condições fáticas e jurídicas.
5) A questão da pandemia e o risco a princípios fundamentais
A realidade produzida pela pandemia colocou em risco a realização de uma pluralidade de princípios – consagrados como direitos fundamentais na Constituição Federal e que são orientados a preservar a dignidade de todas as pessoas.
Uma decorrência inafastável da normatividade dos princípios reside na permanente tensão entre eles. A aplicação de um princípio exige a compatibilização com outros princípios. Como visto, a solução jurídica mais satisfatória é aquela que promove, na maior intensidade e extensão possível, a aplicação de todos os princípios pertinentes.
6) O Direito Emergencial dos Contratos Administrativos
As regras legais e contratuais que consagram o regime jurídico da contratação administrativa refletem princípios constitucionais. Por decorrência, o reconhecimento de um conflito entre um princípio e uma regra deve ser resolvido pelo cotejamento entre princípios.
6.1) A questão da legalidade
Afirma-se que a Administração somente pode executar aquilo que tenha sido previsto em lei. Muitas vezes, esse entendimento se traduz na exigência de uma provisão legal explícita, disciplinando de modo preciso e exato a conduta a ser adotada pela Administração.
Mas a exigência de norma legal como fundamento para a restrição à liberdade privada ou para a atuação estatal se constitui em um princípio. A sua aplicação envolve o sopesamento das circunstâncias e pode ser modulado para se permitir a prestação adequada dos serviços públicos, assegurar a sua continuidade e regulamentar a sua regularidade.
A alteração das circunstâncias da realidade afetou o peso relativo de cada princípio, em termos distintos daqueles verificados até o desencadeamento da crise. No contexto presente, o sopesamento dos diversos princípios aplicáveis impõe uma solução diversa daquela até então consagrada.
6.2) A proporcionalidade e a aplicação do direito
A autoridade administrativa não está vinculada a aplicar o direito vigente tal como se a pandemia não tivesse ocorrido. Mas não lhe é facultado produzir soluções arbitrárias, resultantes de escolhas subjetivas, tal como se não estivesse vinculada a uma ordem jurídica construída a partir de princípios.
As decisões que afastem ou protraiam a eficácia das normas legais, infralegais e contratuais vigentes somente serão válidas se compatíveis com o ordenamento jurídico. A proporcionalidade delimita a autonomia das soluções adotadas, se e enquanto não houver a produção de um regime legal abrangente.
6.3) Eficácia vinculante da licitação
O “princípio da eficácia vinculante da licitação” visa a impedir a alteração radical das condições da contratação, mas a sua aplicação não pode engessar a atividade administrativa. Isso poderia conduzir à destruição da utilidade dos serviços objeto da contratação.
O “princípio do efeito vinculante da licitação” necessita ser compatibilizado com o “princípio da mutabilidade dos contratos administrativos”. Ninguém nega a viabilidade da modificação dos contratos administrativos, mesmo quando resultantes de procedimentos licitatórios. É praticamente impossível que as circunstâncias não se alterem ao longo do tempo e impactem a contratação de longo prazo.
6.4) A isonomia entre os licitantes
A existência de um contrato em curso de execução, afetado por circunstâncias relevantes, exige a adoção de providências compatíveis com esse cenário. A própria isonomia autoriza o tratamento diferenciado para evitar o sacrifício do atendimento às necessidades da Administração e da coletividade, em virtude de eventos supervenientes radicais.
6.5) Equação econômico-financeira e matriz de riscos
No contexto de crise, não é economicamente viável recompor a equação econômico-financeira original, incluída a observância da matriz de riscos, mediante a invocação aos institutos tradicionais.
Mas isso não possibilita modificação para satisfazer exclusivamente os interesses do particular contratado, nem para promover o atendimento a interesses secundários da Administração. A finalidade a ser buscada é reduzir alguns dos efeitos negativos da pandemia, de modo a permitir a continuidade da execução de contratos para produzir resultados satisfatórios para todas as partes (inclusive os cidadãos) envolvidas.
6.6) A renegociação dos contratos administrativos
Em muitos casos, a única alternativa para manter a viabilidade da continuidade da execução do contrato reside na renegociação dos contratos. Isso significa que o particular renunciará aos resultados econômicos estimados originalmente, obtendo como contrapartida a redução das obrigações a que estava sujeito, tal como a Administração deverá auferir resultados menos significativos do que estimado.
Cabe às partes a negociação quanto à dimensão dos benefícios e encargos a serem preservados, com o reconhecimento da inviabilidade da preservação do modelo contratual original. Isso envolve um diálogo entre elas, norteado pela boa-fé e pelo respeito aos interesses legítimos da outra parte.
A dimensão dessas modificações ultrapassa a competência da Administração para imposições unilaterais – porque envolve os direitos e obrigações que, pactuados originalmente pelas partes – eram destinados a prevalecer durante a integralidade da execução do contrato. Por isso, essa alteração significativa das condições originais depende da concordância entre as partes.
A ruptura dos contratos atuais produziria um desastre econômico e social. De modo geral, existe o risco de inviabilização material da continuidade da execução dos contratos administrativos. Isso poderia resultar na ausência de satisfação de direitos fundamentais.
Para que produza os efeitos desejados, essa renegociação deverá ser conduzida mediante um processo fundado em absoluta transparência, que possibilite a participação dos diversos atores envolvidos e da sociedade.
7) O controle das modificações
A redução da eficácia vinculante de regras legais e contratuais deve ser acompanhada de mecanismos de controle adequados e necessários exercidos pelo Poder Legislativo, pelo Tribunal de Contas e pelo Ministério Público.
Esses mecanismos destinam-se a permitir a identificação de desvios e a afastar a imputação de condutas reprováveis relativamente às autoridades e particulares, sem significar a supressão da competência da Administração Pública para implementar as medidas.
8) Conclusão
A pandemia produz dificuldades para os diversos segmentos da sociedade. A superação dessas dificuldades depende não apenas do esforço material de autoridades e sociedade civil. Também depende da capacidade de desenvolvimento de soluções jurídicas aptas a produzir resultados adequados inclusive quanto às relações jurídicas em curso de execução.
Alguns dizem que, depois da pandemia, nada será igual ao que era antes. Essa é uma questão incerta. Mas é inquestionável a inviabilidade de manter as condições previstas nos contratos administrativos tal como pactuados anteriormente à crise. Por isso é necessário iniciar, de modo imediato, a discussão sobre a revisão das contratações em curso para assegurar o atingimento de suas finalidades e reduzir os efeitos nocivos de uma crise sem precedentes.
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1 A versão completa do artigo está disponível em: http://jbox.justen.com.br/s/Ngmno9amBAAAwAB
*Marçal Justen Filho é mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP. Sócio fundador da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini – Advogados Associados.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/325042/direito-administrativo-da-emergencia-um-modelo-juridico