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Publicado por Marçal Justen Filho em 30.11.2012 às 11:53

Um advogado cosmopolita

Entrevista concedida a Joana Neitsch e publicada no jornal Gazeta do Povo em 30/nov/2012:

André Rodrigues/ Gazeta do Povo /

André Rodrigues/ Gazeta do Povo

DIREITO ADMINISTRATIVO

Um advogado cosmopolita

Marçal Justen Filho, advogado especialista em Direito Administrativo

30/11/2012 | 00:04 | JOANA NEITSCH

Para “ver o mundo mais de perto”, o jurista Marçal Justen Filho resolveu ir passar um ano na Universidade de Yale fazendo pesquisas entre 2010 e 2011. Ele gostou tanto da experiência que hoje se divide entre o Brasil e o Estados Unidos e considera que a tecnologia supera os desafios que a distância pode gerar. Mestre e doutor em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), foi aluno visitante no Instituto Universitário Europeu, na Itália. Graduado na Universidade Federal do Paraná, onde lecionou por 20 anos, Justen Filho é autor de diversos livros, o mais recente deles é o “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”. Em uma das passagens por Curitiba em novembro, o advogado recebeu a reportagem da Gazeta do Povo em seu escritório e falou sobre licitações no Brasil. Como torcedor atleticano e ex-advogado do Clube Atlético Paranaense, ele procurou falar com distanciamento sobre o potencial construtivo da Arena.

Qual o futuro da Lei 8666/93 diante da do pregão eletrônico e da do Regime Diferenciado de Contratações (RDC)?
A Lei 8.666 é um diploma geral que tende a ter um papel bastante assessório daqui para frente. Ela foi uma resposta do Congresso e da sociedade brasileira a uma série de desvios que haviam ocorrido no início dos anos 1990. Depois disso, teve todo um processo histórico e ela ficou uma lei razoavelmente obsoleta. A Lei 8.666 tem alguns princípios que vão permanecer em vigor, mas aquela parte funcional, que se refere ao modo de fazer as coisas. A expectativa é de que, se não for a lei do RDC, outra lei vai alterar a 8.666.

André Rodrigues/ Gazeta do Povo

André Rodrigues/ Gazeta do Povo /

A lei do RDC pode se tornar definitiva, então?
A lei do RDC é uma espécie de experimento legislativo, uma solução que é muito praticada em outros países. Quando se tem necessidade de um novo regime para questões extremamente sérias, em vez de simplesmente encerrar a lei vigente e apostar todas as fichas em um regime novo, você faz experimentos legislativos. São leis que têm um novo modelo, mas que não serão aplicadas de modo genérico para sempre. A lei do RDC tem essa função, ou seja, vamos alterar determinadas coisas e ver como funciona. Se isso der resultado, a lei vai ser generalizada.

E como o senhor avalia a utilização do RDC até o momento?
É um pouco frustrante, no sentido de que a lei do RDC dá muitos mecanismos extremamente interessantes e eles não foram utilizados ainda. A administração pública tem uma inércia burocrática, exacerba o passado, tende a mantê-lo para sempre. O aspecto mais interessante do RDC é a possibilidade de que o edital defina qual é o procedimento licitatório. A Lei 8.666, não. Ela já define qual o procedimento licitatório dizendo que existem determinadas modalidades de licitação. Tudo é autonomia para a administração na Lei do RDC. Mas cada vez que a administração vai fazer uma licitação, um funcionário diz assim: “alguém tem um modelo de edital para eu copiar?”. Então, a administração, em vez de fazer uma adaptação em face do contrato de que ela precisa, simplesmente muda o nome, a data e o objeto e continua repetindo. Não conseguem se valer das aberturas que a lei do RDC deu.

O que está sendo utilizado do RDC então?
A grande questão da lei do RDC é no tocante a obras e serviços de engenharia, nisso há uma grande inovação. Mas boa parte dos contratos e obras de serviços de engenharia continuam sendo licitados pela Lei 8.666, o que é mau porque se tem uma rigidez, uma inflexibilidade que poderiam ser afastadas se se fizesse uma licitação na lei do RDC.

A lei do RDC não pode dar mais abertura para corrupção?
A corrupção pode ser reprimida pela lei, mas é um problema cultural, que não pode ser eliminado mediante uma lei que diga que é proibido corrupção. É muito problemático imaginar que o combate à corrupção se faça só no momento da lei de licitações. É um combate genérico de toda a sociedade. Numa sociedade como a brasileira em que a corrupção ainda é aceita, e as pessoas continuam sendo eleitas. Quando alguém é identificado como corrupto em certa sociedade, existe uma rejeição social. No Brasil, a identificação de alguém como corrupto não conduz a que ele deixe de receber votos. Se você afirmar que algum candidato a presidente dos EUA tiver contra si a denúncia de corrupção, isso é suficiente para neutralizar a possibilidade de ser eleito presidente dos EUA. Ele não pode ser acusado disso, não pode dar chances para isso. No Brasil, continua sendo eleito, continua na vida pública e continua tendo votos. Portanto o problema não é a lei, mas a sociedade como um todo.

Qual seria o modelo ideal de licitação?
Não existe. Esta é uma ilusão utópica, um desejo que todos nós temos de dizer o que é o melhor modelo. O que é melhor hoje vai ser insuficiente daqui a um mês ou daqui a um ano. Especialmente quando se trabalha neste meio em que se tem um grande problema de corrupção ou simplesmente desvios – empresas que não são corruptas, mas são incapazes de cumprir as propostas.

O potencial construtivo do Atlético Paranaense é dinheiro público?
Tentarei ser o mais isento possível porque sou torcedor do Atlético. Essa é uma questão relevante porque grande parte da discussão que eu ouço é contaminada pelo aspecto futebolístico. Se você vai assegurar um determinado benefício para o Clube Atlético Paranaense (CAP), você tem de assegurar os mesmos benefícios para outros clubes e associações esportivas. Esta é a primeira questão: isonomia. E eventualmente, inclusive, para outras entidades. A justificativa é que este benefício envolve não apenas o interesse CAP, mas o interesse coletivo. Todo aquele que estiver numa situação semelhante tem de ser prestigiado. Existem inúmeros mecanismos por meio dos quais se transferem benefícios para entidades privadas que estão aptas a atuar no interesse público. Esse mecanismo está difundido no direito brasileiro muito antes de o Atlético cogitar receber vantagens. Isso não transforma a entidade privada em uma entidade pública. Hospitais, por exemplo, são entidades privadas que recebem benefícios em virtude do atendimento a necessidades coletivas que elas produzem. Continuam sendo entidades privadas, as verbas são aplicadas segundo os mecanismos do direito privado. A minha dúvida não é se o potencial construtivo é recurso público. É claro que é recurso público, é inquestionável, e é transferido para uma entidade privada, que é o Atlético Paranaense. Isso não significa que o CAP passe a fazer parte da administração pública. Ele está sujeito a uma série de controles e limites que são os mesmos, independentemente de você torcer para o Atlético, para o Coritiba ou para qualquer outra entidade.

A empresa do filho de Petraglia [Mario Celso, presidente do Atlético] pode ser contratada, então?
Não posso dar nenhuma especificamente sobre o assunto, eu não conheço o caso concreto. Não estou dando opinião se é certo ou errado o CAP.S.A. ter contratado uma empresa que é do filho do Petraglia. Nem sei se isso é verdade, só ouvi falar pela impressa. A questão é que não existe uma resposta em abstrato para o assunto, tem de verificar o caso concreto. Existe alguma irregularidade neste caso ou não? Não pode simplesmente dizer “é filho”. É uma questão que se verifica de outro modo. Existe algum impedimento jurídico para que isso aconteça? Tem de verificar se isso, de acordo com a circunstância concreta, foi certo ou não. Eu li no jornal que o argumento é a qualidade do produto, eu não sei dizer se a cadeira é melhor ou pior ou se vale 12 milhões ou 3 milhões.

O senhor se divide entre Estados Unidos e Brasil. Como estabeleceu essa rotina?
Foram circunstâncias diversas. Fiz uma opção de passar um ano na Faculdade de Direito de Yale. A biblioteca é gigantesca, tem 12 milhões de itens, é espantosa. Acompanhava aulas de direito administrativo americano, que é bem diferente do nosso. A questão maior é de pesquisa mesmo, ter possibilidade de sentar e estudar. Era uma opção de vida: quero ver o mundo mais de perto. Nos EUA, a vida é diferente e tenho uma perspectiva de aumentar, de incrementar o relacionamento entre o Brasil e os EUA, que é algo necessário. Lá, eu não estou habilitado a advogar, tenho uma posição de consultoria sobre direito brasileiro. E o que a gente verifica é que existe um preconceito muito grande do Brasil em relação aos EUA e dos EUA em relação ao Brasil. Do ponto de vista jurídico é ainda mais rica a experiência. Moro em uma cidade a 80 quilômetros de Nova York, chamada Fairfield, no estado de Connecticut. Faz parte deste novo mundo em que as distâncias são superadas pelos recursos de internet. Eu converso com meus sócios diariamente, tanto faz você estar aqui ou em São Paulo ou Brasília. Eventualmente, quase tanto faz estar aqui ou em Nova York. É tão simples de estar em contato, que é algo que no passado era impensável. Eu tenho um filho de 11 anos que estuda lá nos EUA e tenho outro filho de 32 que advoga aqui comigo [em Curitiba].

Qual a diferença entre direito administrativo brasileiro e americano?
No direito administrativo americano não existe direito público e direito privado, aparentemente. Por exemplo, um contrato entre o poder público e um particular segue as mesmas regras de um contrato entre particulares. Só que como lá a autonomia é muito grande, grande parte daquelas características que são de direito público são estabelecidas via autonomia contratual. Então, o governo estabelece as regras. Mas uma característica realmente espantosa é a vedação a que o Poder Judiciário interfira sobre os atos administrativos. É impossível você imaginar um juiz suspender uma licitação nos EUA. Isso não existe. Existe, no entanto, uma série de mecanismos para neutralizar o excesso de poder administrativo. Há o seguinte pressuposto, a autoridade administrativa americana não será corrupta, não será arbitrária e será exercitada para o interesse de todos. Isso é uma questão cultural tão intensa que até pode haver corrupção, desvios, mas eles são mínimos. Então, o juiz não interfere. No Brasil existe um controle muito mais intenso na atividade administrativa do que nos EUA. Resta-nos saber se isso significa que a atividade administrativa brasileira é melhor do que a americana.

O senhor sente falta de dar aula?
Eu comecei a dar aula muito novo, aos 22 anos, quando eu saí da faculdade. Perto dos 50 anos, eu estava muito desanimado de dar aula. Quando estava na faculdade, sempre via aqueles professores antigos e me perguntava: “O que eles estão fazendo aqui? Por que não vão embora?” De repente, eu me olhei no espelho e vi que isso se aplicava para mim, estava na hora de ir embora, eu fiz o que tinha de fazer na vida acadêmica. Dei aula durante 28 anos. Na faculdade, tinha um monte de gente nova, excelente, pessoas estudiosas. Por que eu ia ficar atrapalhando a vida delas? Eles batalhando, e eu lá no fim. Eu não tinha idade para me aposentar, então pedi exoneração. Saí e não sinto falta.



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