Marçal Justen Filho*
A situação brasileira atual, com a revelação dos escândalos de corrupção, tem sido enfrentada com a proposta de “mais do mesmo”. Não existem propostas de soluções adequadas. Talvez porque não há um diagnóstico satisfatório dos problemas enfrentados.
A corrupção é um desvio que acompanha a organização do poder político. Na tradição ocidental, consagrou-se que “o poder corrompe o ser humano”. A separação de poderes conduz a uma função administrativa, exercitada pelos diversos órgãos estatais.
Ocorre que a função administrativa tem sido concebida como uma manifestação da supremacia do Estado em face dos particulares. Os poderes administrativos são exercitados para promover o interesse público, o que justifica o sacrifício de direitos e interesses dos particulares. Esse modelo se baseia na ideia de que “o ser humano corrompe o poder” (Ulisses Guimarães). O modelo do Direito Administrativo resultante se funda no ideal de que o Bem Comum é alcançado por seres humanos dotados de virtudes extraordinárias – incorruptíveis, portanto.
Nesse concepção, os desvios ocorridos na realidade são interpretados como resultantes de falhas de caráter dos agentes públicos e dos particulares ou defeitos na ideologia do partido político. As soluções cogitadas são a substituição dos governantes, a exacerbação das punições e a substituição da Lei de Licitações. Todas essas providências já foram tentadas no passado, não deram resultado e possivelmente não produzirão a alteração do atual cenário.
É necessário um governo de leis, não de seres humanos. Todos os seres humanos são dotados de virtudes e de defeitos. Os fins de interesse comum devem ser realizados pela virtude do direito, não dos homens. Não é suportável subordinar o destino da Nação às virtudes (e aos defeitos) dos indivíduos governantes. Justamente por isso, o despotismo esclarecido é um regime insuportável. Nenhum governante pode ser autorizado a consagrar a sua própria vontade como critério fundamental das decisões políticas. O exercício das competências públicas deve ser submetido a controles que impeçam a imposição da vontade individual.
Também quando se trata de corrupção, a melhor solução é a prevenção. Nenhuma sanção concebida pelo direito (nem a pena de morte) foi suficiente para eliminar a ilicitude. A severidade da sanção é insuficiente para eliminar a opção individual pelo ilícito. Ou seja, é indispensável adotar mecanismos que impeçam a oportunidade para a corrupção, sem imaginar que sanções severas bastariam.
Depois, não há corrupção na esfera pública sem a participação de agente público. É claro que a corrupção é uma atuação bilateral. Mas a atuação isolada do agente privado é insuficiente para a corrupção. Portanto e independentemente de mecanismos de prevenção e repressão dos particulares, é essencial a adoção de mecanismos de prevenção da corrupção no âmbito administrativo.
A substituição da lei de licitações é uma providência muito limitada para prevenir a corrupção. A ausência de corrupção na licitação não significa ausência de corrução durante o contrato. O máximo resultado propiciado pela licitação é a obtenção da proposta mais vantajosa. Mas o acordo reprovável entre agente público e agente privado supera a eficácia da licitação. Afinal, a corrupção se consuma durante a execução do contrato.
Isso não significa negar a necessidade da reforma das licitações. Isso não pode envolver, no entanto, a ampliação ainda maior da sua complexidade. Quanto mais complexa a licitação, tanto menor é o número de interessados. E isso torna inviável que a própria Administração consiga realizar a licitação. Mas o pior é que a ampliação da complexidade da licitação não produz contratações melhores. Não se pode ignorar a questão da assimetria de conhecimentos. O setor privado detém conhecimento mais preciso e aprofundado sobre a sua atividade do que o poder público. Nenhuma providência permitirá que o Estado seja titular de conhecimento equivalente ao do particular. O uso de critérios formais e padronizados conduz à seleção adversa, que consiste em realizar a pior escolha possível: pagar muito por um produto de qualidade inferior. A única alternativa é ampliar a competição e recorrer ao diálogo competitivo, em que os particulares têm a oportunidade para apontar as virtudes dos próprios produtos e os defeitos das ofertas dos competidores. Quanto mais a licitação se afastar dos modelos de negociação privada, tanto maior é o risco de contratação desastrosa. Isso não tem a ver com a corrupção propriamente dita, mas com o desperdício puro e simples dos recursos públicos.
A corrupção decorre das oportunidades ofertadas pelo direito para escolhas prepotentes do agente público. Sempre que o agente estatal dispuser de competência para escolher entre mais de uma alternativa, alguma das quais é favorável ou desfavorável ao particular, surgirá potencial oportunidade para a corrupção. E o direito administrativo brasileiro é repleto dessas previsões. Isso tem a ver com as condições anômalas da execução do contrato. É o chamado regime das prerrogativas extraordinárias, que contemplam poderes unilaterais para o agente realizar uma escolha. Em tese, tal escolha deve ser norteada pelo Bem Comum. Na prática, é uma situação de poder que pode ser utilizada para a corrupção. Existem cinco manifestações principais dessas prerrogativas.
A primeira é a escolha entre contratar e não contratar. Segundo a doutrina tradicional, o vencedor da licitação não tem direito adquirido a ser contratado. A autoridade pode escolher se contrata ou não contrata. Se permanecer inerte, o particular nada poderá fazer.
A segunda é a suspensão do pagamento. Admite-se que a autoridade deixe de realizar o pagamento no tempo devido. O particular não pode se insurgir contra isso antes de noventa dias.
A terceira é alteração unilateral das condições contratuais. O poder público pode alterar as condições pactuadas originalmente. Isso inclui, inclusive, a modificação do cronograma previsto no edital.
A quarta é a imposição de sanções. O Estado pode punir, sem a intervenção de uma autoridade independente e imparcial, o particular contratado. Se isso ocorrer, caberá ao particular recorrer ao Poder Judiciário, mas sempre enfrentando a presunção de legitimidade do ato administrativo.
A quinta é a extinção do contrato por decisão unilateral da Administração. Pode ser fundada na conveniência administrativa e não apenas no inadimplemento do particular.
Em todas essas situações, o particular contratado se encontra na dependência de uma escolha do agente administrativo. Num mundo ideal, essa escolha seria sempre orientada pelo Bem Comum. Mas o mundo real é muito diferente. É muito comum que essas oportunidades sejam aproveitadas para a obtenção de resultados indevidos para ambas as partes.
O resultado prático é a redução do interesse de potenciais fornecedores. Muitas empresas preferem não se arriscar a contratar com a Administração Pública em vista dos riscos gerados por esse sistema jurídico. Mas outro efeito indireto é o aproveitamento pelo particular de oportunidades futuras para compensação por perdas passadas.
Nunca será possível eliminar a corrupção de modo absoluto. Porque não é possível eliminar a ilicitude. Mas é necessário reduzir as oportunidades para a sua prática. No direito administrativo brasileiro, isso significa a redução radical das prerrogativas extraordinárias reservadas ao poder público. É indispensável um tratamento mais igualitário entre Administração Pública e particular – não porque os interesses privados sejam superiores aos interesses públicos. Mas porque a ausência de isonomia dá oportunidade a desvios insuportáveis, em virtude da confusão entre o interesse público propriamente dito e os interesses privados reprováveis. É indispensável a adoção de mecanismos próprios da iniciativa privada. Não significa que o mercado privado seja perfeito, nem que os particulares tenham intentos filantrópicos. O ponto fundamental é o diálogo concorrencial, em que a Administração recorra à própria competição para obter propostas mais vantajosas – ainda que não tenham o menor valor.
É relevante promover a dissociação da competência administrativa. Os poderes extraordinários não devem ser exercitados pela autoridade diretamente envolvida no relacionamento com o contratado. Isso permitirá que o poder controle o poder, inclusive na via administrativa. O exercício de qualquer competência anômala deverá, então, ser absolutamente transparente.
Todas essas propostas são orientadas, em última análise, a ampliar a concepção democrática do Estado brasileiro. O respeito aos interesses dos particulares é uma exigência inerente à democracia. O particular não é um súdito e seus reclamos não se constituem em desrespeito aos poderes dos agentes públicos. Mas sempre resta uma indagação última e essencial: até que ponto o governante deseja efetivamente implantar um regime democrático?
*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.