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Publicado por Marçal Justen Filho em 17.10.2019 às 17:37

A constitucionalidade da Lei 13.303/2016: a distinção entre sociedades estatais “empresárias” e “não empresárias”

In: Rodrigo Xavier Leonardo (coord.), Coletânea de Estudos em Homenagem a Carlos Manfredini Hapner, 1. ed., Curitiba: NCA Comunicações, 2019, p. 163-202.

Publicado por Marçal Justen Filho em 25.07.2016 às 18:15

Coluna da Gazeta do Povo – A nova Lei das (antigas) Estatais

Marçal Justen Filho*

A Lei 13.303, de 30 de junho de 2016, dispôs várias regras sobre o funcionamento das empresas estatais. A relevância da matéria é muito significativa, especialmente no cenário atual. Em tempos de Lava Jato, tornou-se evidente a necessidade de mecanismos de controle dos desvios e de garantia da eficiência das empresas estatais.

A disciplina da Lei das Estatais abrange todas as esferas da Federação. Aplica-se às empresas públicas e sociedades de economia mista e a todas as suas controladas. Mas a Lei enfrenta uma dificuldade cuja origem se encontra na Constituição.

Como se sabe, a Constituição Federal diferenciou as empresas estatais exploradoras de atividade econômica (tais como a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e tantas outras) e as prestadoras de serviço público (tais como a ECT, Infraero e, no plano estadual, as companhias de saneamento). O art. 22, inc. XXVII (com a redação da Emenda Constitucional 19/1998) fundamentou-se nessa distinção. Previu dois regimes para licitações e contratações administrativas. As empresas estatais exploradoras de atividade econômica foram subordinadas ao previsto no art. 173, § 1º. Esse dispositivo determinou a edição de um estatuto jurídico contendo as regras gerais sobre as estatais exploradoras da atividade econômica. Segundo seu inc. III, o estatuto disporia sobre licitação e contratações, que obedeceriam os “princípios” da Administração Pública.

Segundo o próprio art. 22, inc. XXVII, o restante da Administração Pública sujeita-se ao art. 37, inc. XXI, da Constituição. Ali está contida a exigência de um regime mais rigoroso para licitações e contratações administrativas.

A determinação constitucional da existência de dois regimes distintos para licitações da Administração Pública não havia sido implementada. A Lei das Estatais destinou-se a regulamentar, em parte relevante, o art. 173, § 1º, da Constituição. A ausência dessa regulamentação vinha causando problemas graves. A Lei 8.666/1993 era aplicada de modo genérico para todos os casos, o que gerava conflitos permanentes. Sob esse prisma, a Lei 13.303 reflete o cumprimento de uma determinação constitucional que foi criada há dezoito anos.

Mas a Lei 13.303 trouxe uma outra complexidade, não bastassem as existentes no nível constitucional. Estabeleceu que as suas normas aplicam-se a empresa estatal “que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos”. A ressalva relativa ao monopólio da União era dispensável. Mas a previsão de serviço público exercitado por empresa estatal como uma atividade econômica é interessante. Uma quantidade relevante de estatais prestadoras de serviço público passaram a competir no mercado. Assim, por exemplo, a Copel explora serviços de telecomunicação e compete por concessões e autorizações no mercado – exatamente como o faria um agente privado. Por decorrência, essas estatais passam a ser subordinadas ao regime da Lei 13.303.

É indispensável assinalar que as normas da Lei 13.303 versam sobre dois temas distintos, mas que apresentam relação indissociável entre si. Há um conjunto de normas sobre governança corporativa, transparência na gestão e mecanismos de controle da atividade empresarial. E há normas sobre licitação e contratação praticadas pelas estatais.

Os dois temas são inter-relacionados porque a diminuição do rigor da licitação depende da adoção de instrumentos jurídicos e gerenciais que evitem as práticas abusivas. A pura e simples redução do formalismo das licitações das estatais, sem a criação de mecanismos de transparência e compliance, apenas poderia gerar desastres. Foi o que ocorreu com a Petrobras, cujas licitações eram subordinadas a regime simplificado.

É essencial insistir em que o núcleo do problema não é a licitação propriamente dita. Devem existir mecanismos que neutralizem a influência política, imponham a eficiência, reduzam (senão eliminem) o risco de práticas reprováveis e assegurem a mais ampla transparência na gestão das estatais. Ou seja, se for para a estatal ser uma caixa preta, melhor seria promover a sua extinção.

Os dispositivos sobre gestão das estatais previstos na Lei 13.303 são bastante razoáveis. Uma conquista fundamental é o reconhecimento de que a estatal deve atuar norteada pela eficiência econômica. Não se admite estatal exploradora de atividade econômica orientada a dar prejuízo. Isso é um despropósito econômico e político. Por outro lado, foram estabelecidos requisitos e impedimentos para o indivíduo ocupar cargos de administração e estabelecidas exigências de uma gestão responsável e comprometida com objetivos. Mas o relevante é a obrigatoriedade da criação de um Comitê de Auditoria Estatutário. Trata-se de um órgão de controle interno, com no mínimo três e no máximo cinco membros. A maioria dos membros deve ser independente. Esse Comitê tem a função de fiscalizar a atuação inclusive dos administradores. Cabe-lhe, dentre outras funções, instaurar mecanismos de recebimento de denúncias, inclusive sigilosas, quanto a irregularidades. As regras sobre o tema são muito bem-vindas – ainda que possam ser consideradas como o primeiro passo num longo trajeto de vinculação das empresas estatais à efetiva realização dos interesses coletivos.

Já a parte da Lei 13.303 que dispõe sobre licitações insiste nas concepções tradicionais, que já se comprovaram como imprestáveis. De modo geral, permanece a concepção essencial das leis até agora vigentes. Será necessária enorme competência dos gestores das empresas estatais para tornar essa disciplina mais satisfatória.

Há, no entanto, regras específicas inovadoras, como o reconhecimento de que os contratos praticados pelas empresas estatais não se subordinam ao regime de direito público. Aplicam-se as regras de direito privado, com as modificações contempladas na Lei 13.303. Isso acarreta uma relevante redução das margens de discricionariedade da empresa estatal na gestão do contrato – o que produz a diminuição das oportunidades para desvios éticos.

A Lei 13.303 contém uma pluralidade de inovações, que exigem um estudo muito mais minucioso do que o exposto aqui. O grande desafio reside, no entanto, em renovar o modelo de gestão das estatais.

Se as velhas estatais continuarem a ser conduzidas segundo os padrões praticados de modo genérico até agora, a Lei nova será mais uma tentativa inútil. O Brasil não pode continuar a desperdiçar as oportunidades para superar os seus defeitos.

*Marçal Justen Filho é mestre e doutor pela PUC/SP



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