JOTA – O Direito Administrativo tem um encontro marcado com os direitos fundamentais

A supremacia dos direitos fundamentais não é uma questão de conveniência

A Constituição de 1988 reconheceu a intangibilidade da dignidade humana, a centralidade dos direitos fundamentais e a intransigente afirmação da democracia.

No entanto, os eventos da vida real contradizem, com frequência, a ordem constitucional.

Pode ser inevitável a infração da ordem jurídica pelos seres humanos, mas é inaceitável que o Estado desconsidere a Constituição. A realização dos direitos fundamentais depende da atuação do Estado e, em especial, da Administração Pública.

E a Administração Pública permanece pouco permeável às concepções constitucionais. Mantém as práticas difundidas durante as décadas anteriores a 1988

Não há novidade em apontar a resistência do Direito Administrativo brasileiro à supremacia da Constituição. Essa circunstância é referida há mais de 20 anos. Com poucas mudanças até agora.

Ocorre o contrabando de valores e enfoques jurídicos ultrapassados. Proscrito explícita ou implicitamente pela Constituição de 1988, esse arsenal de medidas autoritárias é consagrado pela Administração. O agente público desconsidera a Constituição e se submete às concepções anteriores – disfarçadas ou não por terminologia atualizada e invocando a doutrina produzida pela ditadura.

A Administração Pública brasileira não hesita em sacrificar os direitos fundamentais protegidos constitucionalmente para promover o “interesse público”. Prevalece a concepção imperial dos “poderes da Administração”. Contraditório, ampla defesa e julgamento imparcial submetem-se ao arbítrio do agente público. É comum a autoridade brasileira ignorar as necessidades de populações vulneráveis, decidir sem respeitar o conhecimento científico, descumprir os contratos. Sobrevive a figura da “desapropriação indireta”, prática próxima à criminalidade.

O Estado brasileiro, por um lado, afirma retoricamente a supremacia da Constituição. Por outro, pratica reiteradamente a violação aos direitos fundamentais, que apenas são prestigiados quando conveniente e oportuno. A Administração Pública atua tal como se o enfoque tradicional da discricionariedade administrativa preponderasse sobre a tutela constitucional aos direitos fundamentais.

No Brasil, não ocorreu a constitucionalização do Direito Administrativo, mas a neutralização da Constituição por meio dos mecanismos do Direito Administrativo.

O problema não é jurídico, mas político (num sentido muito amplo). Reside na concepção de que o Estado prepondera sobre o particular e que as conveniências do governante se sobrepõem à ordem jurídica.

Promulgar uma Constituição democrática não basta para transformar o Brasil em uma democracia. É necessário personalizar o Direito Administrativo, reconhecendo a pessoa humana como fundamento e finalidade da atividade administrativa.

A batalha de todos nós é pela afirmação da democracia. E o desafio permanente dos administrativistas é produzir um Direito Administrativo desvinculado do arsenal jurídico autoritário. Sem isso, o Brasil não muda.

MARÇAL JUSTEN FILHO – Doutor em Direito e advogado.

Texto veiculado no JOTA, em 7.2.2023.

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-direito-administrativo-tem-um-encontro-marcado-com-os-direitos-fundamentais-07022023



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