Administração Pública brasileira tem muito a aprender com a Amazon
Consultor Jurídico
OPINIÃO
- 18 de janeiro de 2018, 6h13
Um grande problema para qualquer comprador é a seleção adversa, expressão utilizada para indicar o risco de pagar pouco por um produto destituído de qualidade mínima. Esse risco aumenta quando o critério adotado pelo comprador é simplesmente o menor preço.
A administração pública brasileira sofre de modo intenso com o problema da seleção adversa. A generalização indiscriminada do uso do pregão tem causado problemas cada vez mais insuportáveis para o Poder Público. O Estado brasileiro passou a adquirir produtos imprestáveis sob a justificativa de pagar um valor irrisório. Mas, qualquer que seja o montante pago, a compra é sempre desvantajosa quando o produto adquirido não prestar para nada.
Para piorar as coisas, tem-se difundido a tese de que o pregão pode ser utilizado para a aquisição de qualquer objeto. Bastaria existir um “mercado competitivo”, que propiciasse ofertas reduzidas. O resultado prático é desastroso.
E o pior é que as mesmas pessoas que defendem o uso do pregão se revoltam contra a ausência de qualidade das prestações executadas. Tal como se as duas questões não fossem faces indissociáveis do mesmo fenômeno.
Certamente, o pregão é uma solução útil e valiosa, quando presentes os pressupostos para o seu uso. Mais ainda, pode ser utilizado somente quando presentes algumas cautelas.
Eu tenho perguntado quando a administração pública brasileira poderá recorrer à Amazon para fazer as suas compras. Essa indagação tem sido tomada como brincadeira, mas não o é. Porque a Amazon vai demonstrando como é possível promover contratos com preço cada vez mais reduzido, sem perda da qualidade necessária para satisfazer o comprador.
Numa matéria publicada em 6 de dezembro de 2017, o The New York Timesanalisou um novo aspecto do fenômeno Amazon. O artigo, de autoria de Farhad Manjoo, tem o título “The hidden player spurring a wave of cheap consumer devices: Amazon” — que poderia ser traduzido por “O operador oculto promovendo uma onda de equipamentos de consumo baratos: Amazon”.
Esse artigo analisa o lançamento de uma câmera para conexão pela internet, destinada basicamente a uso doméstico. O produto é produzido por uma empresa com pouco mais de um ano de existência. Esse tipo de câmera é conhecido no mercado, mas a sua comercialização apresenta três pontos revolucionários. O primeiro é o preço: vinte dólares, enquanto os competidores praticam preços oito a dez vezes maiores. O segundo é a qualidade, que é equivalente à dos competidores. O terceiro é a via de comercialização: a Amazon. Os fabricantes narram que o produto foi concebido para utilizar especificamente a Amazon como canal de vendas e que somente a comercialização em grande quantidade — propiciada pela Amazon — viabiliza economicamente o empreendimento.
Mas a questão não se restringe à comercialização em massa. O aspecto fundamental destacado no referido artigo é a revisão dos consumidores, que é divulgada pela Amazon no mesmo espaço em que o produto é ofertado. O comprador de qualquer produto é convocado pela Amazon a fazer uma resenha do produto. Ele é totalmente livre para aprovar ou desaprovar, para apontar os defeitos e as virtudes. Resenhas negativas eliminam o produto do mercado. Ninguém compra um produto que é descrito como imprestável pelos consumidores. E é fundamental salientar que, no sistema estadunidense, o consumidor tem o direito de devolver o produto quando não tiver ficado satisfeito.
Portanto, o produto necessita apresentar qualidade para permanecer no mercado. Essa é uma providência essencial para neutralizar a assimetria de informações do consumidor. Trata-se da reputação do produto no mercado, que é gerada pela experiência dos consumidores mais antigos. Isso significa que a Amazon não está interessada apenas em vender produtos, mas tem a consciência de que a satisfação do consumidor é indispensável para assegurar a continuidade dos negócios.
Sob um certo ângulo, a Amazon opera um sistema de pregão. Os diversos fornecedores oferecem os seus produtos on-line e os compradores realizam as suas compras tomando em vista a qualidade e o preço.
Portanto, a administração pública brasileira tem muito a aprender com a Amazon. O mais simples seria abandonar a sua pretensão de criar um sistema próprio de compras e recorrer àquilo que já deu certo. Melhor comprar na Amazon do que gastar tempo, enfrentar dificuldades intermináveis e acabar com bens e serviços defeituosos e imprestáveis.
No entanto e supondo que o “regime de direito administrativo é incompatível com a Amazon” — haverá quem defenda essa tese —, a administração pública brasileira não tem o direito de ignorar as lições da experiência.
A primeira consiste em conjugar a atividade de aquisição do produto e de sua utilização. Ou seja, a autoridade competente para realizar o pregão deve ser a mesma encarregada de fruir do objeto adquirido. O pregoeiro “especializado” é um sujeito que compra os produtos que não vai utilizar e cuja preocupação fundamental é obter o preço mais reduzido possível. Isso potencializa o risco de comprar produtos imprestáveis simplesmente porque o preço é reduzido.
A segunda é reconhecer que a finalidade da licitação não é simplesmente obter um preço reduzido. É contratar o objeto de qualidade mínima adequada pelo preço mais reduzido.
A terceira é promover a efetiva avaliação da qualidade da prestação recebida em todos os contratos. Cada agente administrativo deve ser convocado a fornecer a sua opinião sobre os objetos e serviços executados por um particular que tenha sido contratado. Isso não significa, como é evidente, inabilitar o licitante simplesmente porque alguém não ficou satisfeito com a prestação executada. Mas esse gigantesco banco de informações deve ser utilizado para balizar as contratações futuras.
Muitas outras cogitações podem ser realizadas. Por exemplo, o pregão deveria ser reservado apenas para contratos em que não existissem prerrogativas extraordinárias da Administração, pois muitos fornecedores se recusam a disputar um contrato com riscos muito elevados. Mas isso já envolve uma revisão muito maior do direito brasileiro.
Enfim, a administração pública brasileira tem muito a aprender. Especialmente com a Amazon.
*Marçal Justen Filho é mestre e doutor pela PUC/SP