Coluna da Gazeta do Povo – Os (quase) noventa anos de Macunaíma
Marçal Justen Filho*
Mário de Andrade escreveu Macunaíma em 1926. A primeira edição apareceu apenas em 1928. Portanto, Macunaíma tem 90 anos, ou quase. O livro é um precursor do realismo fantástico latino-americano. No primeiro prefácio, escrito em dezembro de 1926, o autor colocava o problema em termos tão claros quanto chocantes. Dizia “… uma coisa me parece que certa: o brasileiro não tem caráter… E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo uma entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal”. E acrescentava que “O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional… Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral”. (confira-se em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, Ed. Especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 191/192).
Há uma passagem exemplar no livro. Macunaíma é enganado por um (mais) esperto e perde todo o dinheiro. Nesses dias, Macunaíma e os irmãos tinham tido um plano: ele se passaria por pianista, arranjaria uma pensão do Governo e iria para a Europa. Mas ele resolve fingir ser pintor, “ que é mais bonito”. Depois de ter perdido o dinheiro, Macunaíma descobre que não teria jeito de ir para a Europa: “ Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca”. Macunaíma fica deprimido. “Macunaíma suava que suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do Governo”. Essa não é uma descrição fantástica, mas muito próxima da nossa realidade. No Brasil, o sujeito tenta levar vantagem, perde tudo. Não se culpa por isso. Depois, quer obter um benefício absurdo e indevido. Não consegue. Mas o macunaíma se revolta é contra a injustiça do governo!
Lendo as notícias sobre a realidade brasileira, deparo-me com milhares de macunaímas. Em cargos federais, estaduais, municipais e distritais. Em empresas privadas grandes, pequenas ou minúsculas. São aquelas personagens que dão entrevistas e aparecem em público sem a menor vergonha, sem a menor consciência da própria responsabilidade pelos desacertos, pelos equívocos, pelas falcatruas. Governantes que tomaram decisões desastrosas, que (no mínimo) não reprimiram a corrupção, que lotearam a gestão entre aliados e não aliados comparecem perante o público para afirmar que a crise é resultado do desaquecimento da economia chinesa! Os confessadamente corruptores e corruptos transitam como uma espécie de heróis nacionais, sempre lamentando as injustiças que sofrem. Todos são realmente sinceros em sua ausência de avaliação sobre os próprios erros, sobre as próprias faltas, sobre a sua participação no desastre nacional. Nenhum deles experimenta um arrependimento moral, porque isso pressuporia reconhecer a própria falha. Todos se julgam sinceramente inocentes e todos se veem efetivamente como injustiçados. São todos herois sem nenhum caráter.
No fim, a vida perde a graça para Macunaíma, que se transforma em estrela. E dele todos se esquecem. Mário de Andrade não promoveu um final moralista para a sua história. Mas ele nunca pretendeu promover a defesa da canalhice. Seu livro é mais uma irônica descrição da realidade nacional do que um elogio à virtude da falta de virtude.
Nenhuma sociedade pode sobreviver sem valores, sem compromisso individual e coletivo com princípios transcendentes. É indispensável que todos nós sejamos moralistas. Não significa hipócritas, muito pelo contrário. Significa construirmos um caráter e afirmarmos um comprometimento com ele. Implica admitir que há certo e há errado. Que existe o certo e existe o fácil e que nem sempre os dois coincidem. Essa é a própria essência do direito, que existe para consagrar modelos de certo e errado. E para punir os infratores.
Mas nenhum direito será viável numa sociedade composta apenas ou preponderantemente por macunaímas. É muito ilusório imaginar que é suficiente reformar o Estado e o direito para assegurar a dignidade humana. Sem a reforma individual não há possibilidade de uma sociedade decente. Enquanto cada indivíduo não tomar consciência de que o problema começa com ele próprio não adianta Lava Jato, Impeachment, Reforma Política etc.
Macunaíma nunca teve a menor noção do dilema do prisioneiro. Noventa anos é um tempo razoável para meditar sobre isso e tentar uma solução. Com caráter e sem preguiça.
*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.