Coluna da Gazeta do Povo – A crise do “Direito Administrativo do Espetáculo”

Marçal Justen Filho*

Em 2008, escrevi um texto sobre o “Direito Administrativo do Espetáculo”, que foi publicado numa coletânea organizada por Floriano de Azevedo Marques Neto e Alexandre Santos de Aragão. O texto será republicado, numa versão atualizada, a propósito de uma nova edição dessa obra. É interessante cotejar as realidades do passado e do presente sob a ótica nele adotada. E vale a pena realizar uma síntese sobre o assunto.

Alguns pensadores apontaram o fenômeno da “espetacularização” da sociedade e do Estado. O “Espetáculo” consiste numa manifestação de entretenimento. As diversas dimensões da realidade são transformadas em entretenimento na nossa sociedade. Desde os eventos positivos aos mais dramáticos. A filmagem ao vivo de seres humanos e a sua divulgação imediata na internet é uma evidência muito clara disso. Lembre-se o que se passou há pouco nos EUA, onde uma repórter e um cinegrafista foram alvejados durante uma entrevista ao vivo. O mundo todo assistiu. É assim que realidade e imaginação se confundem num Espetáculo que conduz à passividade. A vida se transforma num videogame.

O Estado incorporou a concepção do Espetáculo. O governante se transformou num astro, que é promovido por meio das mesmas técnicas adotadas para cervejas e filmes. É difícil diferenciar a atividade administrativa cotidiana e a novela diária. A sociedade é transformada em uma grande Plateia, que assiste extasiada às aventuras dos governantes.

Surge, então, o “Direito Administrativo do Espetáculo”, um conjunto de manifestações estatais destinadas a criar imagens de progresso, dedicação dos governantes e promoção do interesse público. A atividade administrativa de Espetáculo consiste essencialmente na demonstração pública de grande azáfama governativa. Os administradores públicos produzem permanente informação à Plateia relativamente às ações imaginárias que desenvolvem.

Essa atividade administrativa Espetacular se produz por meio da utilização de conceitos aptos a manter o espectador na condição de um elemento passivo, ocupado em acompanhar a proliferação de notícias políticas e jurídicas. Trata-se de prender a atenção dos indivíduos comuns, neutralizando o seu senso crítico e impedindo qualquer comparação entre a ação administrativa e o mundo real não imaginário.

O Direito Administrativo do Espetáculo é um instrumento essencial para o Estado do Espetáculo, eis que as ações imaginárias do governante envolvem a utilização de conceitos e expressões técnico-científicas, que são recepcionados pela Plateia com um misto de desconhecimento e espanto.

Essa instrumentalização do direito apresenta duas dimensões inconfundíveis, mas entre si relacionadas. Existe uma dimensão de entretenimento propriamente dito, em que a utilização de figuras jurídicas produz efeitos puramente imaginários na Plateia. Por exemplo, a afirmativa de que determinada decisão envolve a defesa da “soberania” do país desencadeia um conjunto de emoções e imagens individuais e coletivas. O indivíduo vincula aquela decisão ao universo imaginário heroico e pode, em situações extremas, dispor-se inclusive a doar a própria vida para defesa das ações do governante.

E há uma outra dimensão a ser considerada, que se relaciona à imunização das escolhas e decisões do governante ao controle direto da Plateia. O expectador, que não domina a argumentação jurídica, aceita a decisão que invoca a defesa da soberania, especialmente pelas razões jurídicas que se afiguram a ele como incompreensíveis.

É verdade que não se nega à Plateia o exercício de opiniões – faz parte do Espetáculo a formulação de opiniões por parte do espectador. Mas não se admite que o espectador assuma posição ativa. A intervenção direta do espectador, não prevista e não desejada, atrapalha o desenvolvimento da atuação espetacular governativa. Logo, a utilização do aparato jurídico destina-se também a manter a Plateia como tal. É necessário gerar a ilusão de que o governante exercita toda a sua atuação no interesse da Plateia e que as decisões adotadas são as mais corretas e perfeitas. Como dito, a Plateia deve imaginar que o seu governante é o melhor possível.

O mundo real encarregou-se de demonstrar, no entanto, a existência de limites para a prevalência do mundo imaginário produzido na dimensão estatal. A Plateia pode ser mantida entretida, mas apenas se e enquanto o Estado desenvolver atuação dotada de um mínimo de efetividade para o enfrentamento das necessidades de sobrevivência dos indivíduos.

A experiência dos fatos evidenciou que o distanciamento entre a realidade e o discurso do governante gera o crescimento da insatisfação da população, o que produz o rompimento da proposta do Espetáculo.

Um dos fatores que conduzem à percepção pelo público em geral da situação insatisfatória reside no crescimento contínuo dos gastos públicos. A elevação das despesas governamentais exige a ampliação da carga tributária, a alienação de bens e direitos estatais e o endividamento do Estado perante o sistema financeiro nacional e estrangeiro. Em médio prazo, isso amplia os riscos de descontrole inflacionário. Desencadeia a constatação pela Plateia de uma situação desagradável, de empobrecimento econômico individual e coletivo.

O indivíduo percebe que uma parcela relevante de seu patrimônio e das riquezas da Nação é transferida para o Estado sem que a isso corresponda a possibilidade da fruição de vantagens e benefícios. O discurso do “progresso”, da “melhoria”, do “resgate de direitos” se torna quase uma ofensa em face da situação concreta do indivíduo.

Um aspecto específico da problemática se relaciona com a incapacidade de o Estado desempenhar o monopólio da violência. Isso se passa nos casos em que permanecem bolsões privados titulares da capacidade de promovê-la. Essas organizações privadas se superpõem ao Estado, submetendo parcelas relevantes da população à existência de uma espécie de “organização política paralela”. Em termos práticos, ocorre a ausência de prevalência de valores jurídicos. Mais precisamente, prevalece o interesse puramente egoísta das organizações criminosas.

A questão é ainda mais grave quando o Estado não assegura o monopólio da violência segundo o princípio da proporcionalidade. Se a violência privada das organizações criminosas é acompanhada da violência injusta dos organismos estatais, surge uma situação insuportável para os indivíduos. O resultado prático é a submissão do indivíduo aos desmandos tanto de particulares como de agentes estatais. A violência se traduz na perda de vidas, no sofrimento físico, na redução patrimonial, na ausência de tranquilidade.

O medo individual e coletivo é incompatível com a aceitação de versões idílicas sobre as virtudes puramente idealizadas e retóricas de um governo espetacular.

As circunstâncias fáticas se sobrepõem ao discurso formal dos ocupantes do poder. Não se trata da eliminação do Espetáculo, o qual continua a ser promovido de modo contínuo. O que se passa é que o Espetáculo produz efeitos mais intensos apenas para parcelas reduzidas da população. A Sociedade do Espetáculo continua a existir, mas sem que o Estado consiga inserir a sua própria produção no cenário. A população em geral se reconhece como marginalizada em face do Espetáculo oficial.

A questão da crise do Estado do Espetáculo se relaciona também com o surgimento de mecanismos privados muito mais eficientes para a criação de realidades virtuais e para a generalização do entretenimento. A contraposição entre o Estado de Espetáculo e a Sociedade do Espetáculo adquire contornos diferenciados em vista do surgimento de recursos tecnológicos que asseguram a comunicação de massa e que compreendem, de modo especial, a chamada “mídia social”.

Os recursos da internet e os novos aplicativos destinados à telefonia móvel permitem formas de interconexão inviáveis no passado. De modo genérico, essas soluções técnicas escapam do controle estatal e independem de infraestruturas complexas ou onerosas. Um indivíduo comum dispõe de condições de estabelecer comunicação com um número indeterminado de sujeitos, sem que tal atividade se subordine ao controle estatal.

O acesso permanente e ilimitado à informação dificulta a produção de versões estatais conflitantes com os fatos disponíveis na rede de informações. O Espetáculo estatal necessita ser plausível e a contradição com as notícias divulgadas conduz a seu descrédito. Torna-se cada vez menos possível ao Estado levar a população a acreditar numa versão absolutamente desconectada da realidade.

Um dos efeitos desse novo paradigma de conduta social é a obsolescência das soluções tradicionais de organização popular e de representação da vontade do Povo. Os partidos políticos e os órgãos estatais não são identificados pela sociedade como a via para a manifestação dos pleitos e para a exteriorização da soberania popular. Produz-se uma crise de legitimidade dos órgãos públicos – o que incrementa a dificuldade na produção do Espetáculo oficial.

Esse é o cenário brasileiro, cujo diagnóstico é menos complexo do que a formulação de propostas para o futuro. A recusa da população em manter uma posição passiva pode resultar em soluções práticas muito distintas. Seja lá o que vier a ocorrer, uma coisa é certa: o Espetáculo oficial terá de ceder à ruptura da passividade e à participação efetiva da Plateia. O Espetáculo será comandado pela Plateia. Ou seria isso uma simples e doce ilusão, tipo “reality show”, “melhor chefe de cozinha” e por aí afora?

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.



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