Arquivo de abril de 2018

Publicado por Marçal Justen Filho em 24.04.2018 às 17:05

JOTA – Prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por improbidade

Marçal Justen Filho

Miguel Gualano de Godoy

O STF julgará em breve o Recurso Extraordinário 852.475 Tema 897 da Repercussão Geral – sobre a prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por improbidade administrativa à luz do art. 37, §5º da Constituição da República. O relator do recurso é o Min. Alexandre de Moraes.

1. A controvérsia do RE 852.475 – Tema 897 da Repercussão Geral

A controvérsia envolve o art. 37, §5º da Constituição Federal, assim redigido:

§5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as ações de ressarcimento.

2. A interpretação literal adotada por alguns

Uma parcela da doutrina e da jurisprudência afirma que o dispositivo acima transcrito teria, de modo literal, eliminado a prescrição das ações de ressarcimento. Apesar de amplamente difundida, essa tese não encontra respaldo no texto do dispositivo constitucional em questão. Essa interpretação esbarra na péssima redação gramatical do dispositivo.

O texto constitucional não contempla a expressão “imprescritibilidade”. Não houve a explícita vedaçãoà prescrição das ações de ressarcimento.

A tese da imprescritibilidade funda-se em interpretação a contrario sensu”. A primeira parte do dispositivo determina que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para os ilícitos que causem prejuízo ao erário. A segunda parte contempla uma ressalva – mas o texto constitucional, em si mesmo, não define a destinação de tal ressalva.

Alguns extraíram o entendimento de que a ressalva seria relacionada com a expressão “prescrição”.Então, o dispositivo deveria ser interpretado tal como se a sua redação fosse a seguinte:

A lei estabelecerá os prazos de prescrição, ressalvadas as ações de ressarcimento, para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário.

Contudo, essa é uma dentre as duas possibilidades semânticas que a redação comporta. É cabível reputar que a ressalva se relaciona a expressão lei. Nesse caso, o texto seria interpretado tal como se a sua redação fosse a seguinte:

A lei, ressalvadas as ações de ressarcimento, estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário.

Nesse caso, a ressalva implica que as ações de ressarcimento não serão disciplinadas por uma determinada lei específica, mas sim pela lei geral. Segundo essa proposta, o art. 37, § 5º , consagrou dois regimes legais para determinar a prescrição. No âmbito dos ilícitos que causem prejuízo ao erário, a lei adotará um regime próprio para a prescrição. Já em relação as ações de ressarcimento, a prescrição será disciplinada pela norma geral.

Ainda que ambas interpretações possam ser defendidas, é evidente a insuficiência da interpretação literal. Diante das duas alternativas semânticas apontadas, a determinação do sentido do dispositivo somente pode ser obtida mediante a interpretação sistemática.

3. O descabimento da imprescritibilidade

A tese da imprescritibilidade de uma ação é incompatível com a interpretação sistemática da Constituição – notadamente à luz dos direitos e garantias fundamentais. A Constituição não pode ser interpretada em tiras.

O instituto da prescrição é elemento do direito fundamental à segurança jurídica, conferindo estabilidade às relações sociais ao delimitar temporalmente o prazo para o exercício da pretensão. Assim se passa inclusive quanto às pretensões sancionatórias do Estado. Cabe ao titular da pretensão exercer o direito de ação em face do agressor, mas em tempo certo ou ao menos determinável.

Sob esse enfoque, a prescrição deve ser reconhecida como integrada ao art. 5º, da Constituição e abarca tanto as pretensões pertinentes a direitos de origem privada quanto pública.

Por outro lado, a tese da imprescritibilidade (inclusive de ações de reparação de dano) é incompatível com o paradigma constitucional nuclear, que se relaciona com a proteção da vida. Admite-se a prescrição inclusive de ações relacionadas com os valores jurídicos mais transcendentes. O bem jurídico de maior valor, tutelado por todas as esferas do ordenamento jurídico, é o direito à vida.

Sendo direito fundamental e “fonte primária de todos os outros bens jurídicos”, o direito à vida ocupalocus especial na hierarquia dos direitos. A despeito disso, mesmo a mais grave violação à esse direito épassível de prescrição. O crime de homicídio simples, por exemplo, prescreve em 20 (vinte) anos, conforme dispõe o art. 109, I, c/c art. 121, do Código Penal.

Assim como o crime de homicídio, todos os ilícitos e as correspondentes pretensões estão sujeitos à prescrição, segundo regulamentação do art. 109, do Código Penal.

No caso de ofensa ao direito à vida, a pretensão indenizatória se viabiliza através de ação civil ex delicto ou ação de responsabilidade civil. O prazo prescricional é de três anos (art. 206, §3º, V, Código Civil), contados do trânsito em julgado da sentença condenatória na ação penal.

Ora, se a transgressão ao bem jurídico mais essencial comporta prescrição, não há como afastar essa solução quanto a direitos muito menos relevantes, de natureza exclusivamente patrimonial. Não háfundamento para eliminar a prescrição das pretensões de recomposição do erário público – ainda que a ofensa decorra de crime ou improbidade. Isso conduziria a uma inversão da relevância dos valores protegidos constitucionalmente e imputaria à Constituição uma incongruência insuperável.

4. A confirmação da tese adotada

Por outro lado, é inquestionável a prescritibilidade das ações para cobrança de créditos fazendários.

O regramento geral a ser aplicado é o prazo prescricional cabível às ações movidas pela Fazenda em face de particulares – 05 (cinco) anos, contando da data do ato ou fato do qual se originaram (art. 1º do Decreto 20.910/1932).

Até por isso, é inquestionável que as pretensões da Fazenda Pública são prescritíveis. Isso alcança a generalidade dos créditos titularizados contra os particulares. Mais precisamente, essa prescrição independe da natureza jurídica da sua causa, inscrito o crédito em dívida ativa, passa a correr o prazo prescricional.

Se as dívidas passivas da União, Estados e Municípios devem ser cobradas pelos particulares no prazo de 05 (cinco) anos, em atenção ao princípio da isonomia, tambéé esse o prazo para a Fazenda Pública cobrar os particulares, conforme jurisprudência consolidada do STJ.

Destaque-se, nesse sentido, decisão do Min. Marco Aurélio Mello no Mandado de Segurança 35.294 reconhecendo a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário e o prazo quinquenal a ser aplicado a tal pretensão (MS 35.294. Rel. Min. Marco Aurélio. 06/03/2018).

Diante disso, para os ilícitos, incide a lei específica, conforme o caso – na hipótese concreta, a Lei de Improbidade Administrativa. Para as ações de ressarcimento, deve incidir a norma geral para toda e qualquer situação que envolva a tal pretensão o Decreto 22.910/32.

5. A prescrição de todas as pretensões contra a Fazenda Pública

Mas há outra faceta da questão constitucional, consistente na prescritibilidade de todas as pretensõescontra a Fazenda Pública. Os danos causados pelo Estado contra o particular, mesmo decorrentes de crimes e de condutas altamente reprováveis, prescrevem. Não há fundamento constitucional para estabelecer uma distinção entre as situações do Estado e do particular.

6. A evolução do STF e o precedente do RE 669.069 (Tema 666 da Repercussão Geral)

A orientação ora defendida já foi implicitamente acolhida pelo STF no julgamento do RE 669.069 (Tema 666 da Repercussão Geral). Naquela oportunidade, o Plenário do STF assentou a tese de que “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.

Mas o texto literal da Constituição não consagra qualquer distinção quanto à natureza do ilícito gerador da pretensão de ressarcimento. O STF adotou entendimento fundado na necessidade de uma interpretação sistemática. Considerando o conjunto das normas constitucionais, foi reputado como insuportável admitir imprescritibilidade da reparação civil.

Aquele caso concreto envolvia relação com ilícitos cometidos em acidentes de trânsito, pelo que depois surgiu dúvida quanto à abrangência do termo “ilícito civil” utilizado na tese firmada.

Foi após o julgamento desse precedente e da fixação da tese de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil que então se reconheceu a repercussão geral do RE 852.475 (Tema 897 da Repercussão Geral) para bem delimitar a prescritibilidade, ou não, das ações de ressarcimento ao erário decorrentes de ato de improbidade administrativa.

7. A interpretação equivocada: a Constituição lida a partir da ressalva

O argumento de a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrer de texto literal da Constituição é equivocado. Em primeiro lugar, essa determinação não está prevista literalmente na Constituição. Depois, é incompatível com regime de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, CF/88).A “ressalva” se destina a diferenciar a regulamentação que incide para os prazos de prescrição das ações de ressarcimento (art. 37, §5º, segunda parte) em relação aos prazos de prescrição para os ilícitos (art. 37, §5º, primeira parte).

Ou seja, o art. 37, §5º da Constituição estabelece o regramento da prescrição para os ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não em sua primeira parte. E na segunda parte é estabelecido o regramento que incide para as ações de ressarcimento.

Dessa forma, na hipótese do presente RE 852.475 (Tema 897 da Repercussão Geral), incidem os prazos de prescrição previstos pela Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992). Já para as ações de ressarcimento, como foram ressalvadas da aplicação dos prazos de prescrição dos ilícitos, deve incidir a norma geral de prescrição para as pretensões estatais.

8. Conclusão: a prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário

Não é cabível dentro do quadrante constitucional cogitar da imprescritibilidade de qualquer pretensão, seja ela punitiva ou ressarcitória, sob pena de ofensa ao direito fundamental à segurança jurídica e existência digna.

Tampouco se pode inferir da literalidade do art. 37, §5º da Constituição que as ações de ressarcimento ao erário foram ressalvadas da incidência dos prazos de prescrição.

O disposto no art. 37, §5º estabelece um duplo regramento para os prazos prescricionais – um prazo prescricional a ser previsto em lei para os ilícitos e outro para as ações de ressarcimento ao erário. Ao ressalvar do prazo legal específico dos ilícitos, o art. 37, §5º (segunda parte) deixou as ações de ressarcimento ao erário submetidas ao regramento geral das ações movidas pela Fazenda em face de particulares.

O prazo prescricional para as ações de ressarcimento ao erário, portanto, é de 05 (cinco) anos, contados, da data do ato ou fato do qual se originaram –, conforme art. 1º do Decreto 20.910/32.

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 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.

 A esse respeito, confiram-se os seguintes vv. julgados: AgRg no REsp 1.236.866/RS, Primeira Turma, rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, j. 17.3.2011; REsp 1.197.850/SP, Segunda Turma, rel. Min. CASTRO MEIRA, j. 24.8.2010; REsp 1.125.508/GO, Segunda Turma, rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, j. 3.8.2010.

Texto veiculado no JOTA, em 23.4.2018

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/prescritibilidade-das-acoes-de-ressarcimento-ao-erario-por-improbidade-23042018

Publicado por Marçal Justen Filho em 19.04.2018 às 17:11

JOTA – PL 7448/2017 e sua importância para o Direito brasileiro

Marçal Justen Filho

A aprovação do Projeto de Lei 7.448/2017 merece aplausos da comunidade jurídica em seu conjunto. A sua integral conversão em lei representa um avanço essencial para assegurar o progresso nacional, os investimentos indispensáveis e a segurança jurídica. Alguns argumentos levantados contra o diploma são improcedentes.

O Projeto fornece regras para disciplinar a invalidade dos atos administrativos. Não proíbe nem restringe a anulação de atos. Reduz a insegurança causada por anulação de um ato ou contrato administrativo.

É preciso afastar a crítica quanto ao combate à corrupção. O Projeto não se refere a questões de corrupção, não restringe os poderes de investigação, não assegura imunidades nem privilégios. Não é um projeto para “acabar com a lava-jato”, argumento utilizado hoje em dia para qualquer coisa.

O Projeto não restringe as competências do Tribunal de Contas, que são inconfundíveis com as do Poder Judiciário. Ele autoriza o Poder Judiciário a declarar a validade de atos jurídicos antes de uma controvérsia perante o órgão de controle. Ao invés de ingresso no Poder Judiciário depois da decisão contrária do órgão de controle, fica admitido o exame antecipado pelo Judiciário. O Tribunal de Contas permanecerá titular de sua competência, que não se confunde com aquela do Judiciário.

O Projeto resolve um problema grave, que é a incerteza produzida pela invalidação de ato administrativo. Passa a ser obrigatório determinar expressamente os efeitos da decisão. Isso não significa exigir que a pessoa tenha poderes sobre-humanos de previsão do futuro. Basta aplicar o conhecimento disponível. O Projeto não determina que é obrigatório prever o imprevisível.

Nem cabe dizer que o problema é impor essa exigência para as decisões dos órgãos de controle. O Projeto determina que o órgão de controle deixe claro os efeitos de suas decisões. Isso é essencial para evitar que um processo administrativo ou judicial demore décadas para ser concluído e sejam necessárias outras décadas para determinar os efeitos de uma decisão de invalidação.

O Projeto também prevê uma transição para a aplicação de interpretações inovadoras, reconhecendo as dificuldades dos diversos órgãos em seguir novidades. Isso não afeta a competência do Tribunal de Contas, nem mesmo quando se prevê um ajustamento de conduta. A democracia exige que a administração seja consensual. O Projeto segue essa concepção, protegendo os servidores e os particulares que atuam de boa-fé. Outra solução nessa linha é admitir acordos para corrigir situações irregulares. Isso é largamente praticado no âmbito do Ministério Público (Termos de Ajustamento de Conduta – TAC). O Projeto autoriza essa solução, ressalvando os casos de enriquecimento ilícito ou crime. E estabelece que, se for o caso, é possível submeter o acordo à aprovação do Poder Judiciário.

Justamente por isso, o Projeto determina que o servidor público somente pode ser punido por decisão ou opinião em caso de dolo ou erro grosseiro. Trata-se afastar o chamado “crime de hermenêutica”, em que o sujeito é punido por ter adotado interpretação diversa daquela escolhida por outrem. O crime de hermenêutica é repudiado universalmente, mas tem sido largamente praticado entre nós contra os servidores públicos.

O Brasil necessita de investimentos, especialmente em infraestrutura. Isso depende de segurança jurídica, previsibilidade e transparência. O Projeto caminha nessa direção. Não é uma solução final, mas é um passo importante. O que não é possível é ficarmos marcando passo ou andando de costas para o futuro.

Texto veiculado no JOTA, em 18.4.2018

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-justen/pl-7448-2017-e-sua-importancia-para-o-direito-brasileiro-18042018



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